Do direito constitucional ambiental ao direito constitucional ecológico
“Se a reivindicação de direitos (legais) para o meio ambiente ou para os animais (Rechten für die Umwelt oder die Tiere) parece estranha, isso ocorre não porque contrarie a ordem constitucional atual, mas precisamente porque a reivindicação não se enquadra na imagem tradicional, essencialmente religiosa, segundo a qual o homem, como coroa da criação, faz do mundo (isto é, da Natureza e dos animais) seu súdito. Tais imagens tradicionais, por sua vez, são mutáveis, mesmo que estejam fortemente ancoradas em visões sociais e tenham encontrado sua expressão legal dessa forma. Antigamente, era impensável atribuir às mulheres, escravos ou ‘indígenas’ direitos próprios. A Natureza tinha construído uma ‘diferença insuperável’ (unüberwindlichen Unterschied) contra eles – assim a convicção prevalecente naquela época.” (Michael Kloepfer).
A passagem citada descreve com precisão a magnitude da intervenção do ser humano no Planeta Terra, culminando com o término do Período Geológico do Holoceno (ou Holocênico) e o início do novo Período Geológico do Antropoceno (“Era dos Seres Humanos”). O nome “Antropoceno”, como se pode presumir, é atribuído em razão do comportamento de uma única espécie (o “ser humano”), notadamente como decorrência da sua intervenção no Sistema do Planeta Terra (Earth System). Não se trata, portanto, de uma homenagem “positiva”, como reconhecimento da sua virtude e harmonia na sua relação com as demais formas de vida e o sistema planetário como um todo (Gaia). Mas justamente o contrário disso.
O início do Antropoceno é identificado por alguns autores a partir do período que se seguiu após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) até os dias atuais, denominado como “A Grande Aceleração” (The Great Acceleration). Desde que surgiu na história natural do Planeta Terra, há aproximados 200.000 anos, o Homo sapiens passou a maior parte desse tempo quase desapercebido pela superfície planetária, pelo menos se considerado seu impacto numa escala global. Em mais de 90% desse período, como referido na passagem inicial, ele transitou pelo globo terrestre como “caçadores e coletores”, cujo impacto resumia-se ao âmbito local onde se estabelecia. Somente 10.000 anos atrás, período que coincide aproximadamente com o início do Holoceno, a agricultura passou a ser desenvolvida em diferentes partes do mundo. Mas as “pegadas” humanas mais significativas somente começaram a ser emplacadas a partir da Revolução Industrial, ou seja, no início do Século XIX, com o uso progressivo de combustíveis fosseis, consumo de recursos naturais e aumento populacional exponencial.
Alguns cientistas têm utilizado hoje a expressão “limites ou fronteiras planetárias” (Planetary Boundaries) para identificar os principais processos biofísicos do Sistema do Planeta Terra nos quais a sua capacidade de auto-regulacão e resiliência já se encontra comprometida ou em vias de ser. São nove categorias identificadas: 1) Mudanças climáticas; 2) Acidificação dos oceanos; 3) Diminuição ou depleção da camada de ozônio estratosférico; 4) Carga atmosférica de aerossóis; 5) Interferência nos ciclos globais de fósforo e nitrogênio; 6) Taxa ou índice de perda de biodiversidade; 7) Uso global de água doce; 8) Mudança no Sistema do Solo (Land-System Change); e 9) Poluição química.
Em pelo menos três casos – mudanças climáticas, interferência nos ciclos globais de fósforo e nitrogênio e taxa ou índice de perda de biodiversidade -, os cientistas são assertivos em assinalar que os “limites” e margem de segurança já foram ultrapassados em escala global. Impõe-se, portanto, necessariamente, o recuo da intervenção humana em tais subsistemas planetários, os quais estão inter-relacionados e ditam a sustentabilidade e capacidade de resiliência em escala planetária.
Tais “limites” planetários (com impactos locais, regionais e globais) são apontados não por políticos, agentes estatais ou ambientalistas, mas por cientistas, os melhores e das melhores instituições científicas do mundo, incluindo Prêmios Nobel entre eles. Como colocado expressamente no Preambulo do Acordo de Paris (2015), a comunidade internacional reconhece “a necessidade de uma resposta eficaz e progressiva à ameaça urgente da mudança do clima com base no melhor conhecimento científico disponível”.
Um dos últimos alertas científicos globais foi dado no mês de maio de 2019, com a divulgação do sumário do “Relatório de Avaliação Global sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos” (Global Assessment Report on Biodiversity and Ecosystem Services), aprovado na sua 7ª sessão plenária, realizada em Paris, pela Plataforma Intergovernamental Científico-Política sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) da ONU, instituição com papel equivalente ao desempenhado na área das mudanças climáticas pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU.
Entre os diversos aspectos alarmantes destacados no documento, que representa a avaliação mais abrangente já feita mundialmente na matéria, destaca-se o perigoso declínio “sem precedentes” da Natureza na história da humanidade, com a “aceleração” das taxas de extinção de espécies, a tal ponto em que 1.000.000 (um milhão) de espécies encontram-se hoje ameaçadas de extinção no Planeta. Tal situação também representa graves impactos sobre as pessoas em todo o mundo.
O relatório também destaca que a resposta global atual tem sido insuficiente, impondo-se a necessidade de “mudanças transformadoras” para restaurar e proteger a Natureza, notadamente superando a oposição de interesses instalados em prol do bem ou interesse público ou comum global. Não se trata, portanto, de “ideologia” (de esquerda ou de direita), mas de fatos comprovados cientificamente. Em outras palavras, é a “verdade” que está em jogo, por mais “inconveniente” que ela possa ser para os interesses de alguns (como, por exemplo, as grandes corporações mineradoras, químicas e petrolíferas multinacionais e os governos que lhes dão sustentação política).
O Direito Constitucional Ecológico, dada a natureza multidisciplinar das suas fontes, deve pautar-se por tal realidade planetária, o que, a nosso ver, impõe inclusive a discussão em torno de uma nova fase do seu desenvolvimento à luz de um novo paradigma ecocêntrico dada a magnitude dos desafios de ordem existencial relacionados ao atual “estado ambiental global”. Igualmente, não há como negar um certo “fracasso” do Direito Ambiental, tanto em âmbito internacional quanto doméstico, após aproximadamente cinco décadas de existência e edificado com base em um paradigma predominantemente antropocêntrico, em conter os rumos civilizacionais predatórios na relação com a Natureza.
Como já nos havia alertado Vittorio Hösle, no sentido de estarmos situados num ponto de viragem na história da humanidade, nunca antes na esfera jurídica a discussão em torno de uma virada copernicana de matriz “ecocêntrica” se fez tão presente (e urgente), sobretudo após o reconhecimento de que estamos vivendo em um novo período geológico (Antropoceno) derivado do nosso impacto na integridade ecológica do Planeta Terra.