Estado absolutista x Estado de Direito: escolha com cuidado, você pode ser a próxima vítima, por Fábio de Oliveira Ribeiro
Estado absolutista x Estado de Direito: escolha com cuidado, você pode ser a próxima vítima, por Fábio de Oliveira Ribeiro
Em seu livro O Inimigo no Direito Penal, E. Raúl Zaffaroni afirma que:
“…não há nada capaz de impedir o Estado no qual se introduz o conceito de inimigo acabe em Estado absoluto.” (O Inimigo no Direito Penal, E. Raúl Zaffaroni, Editora Renavan, Rio de Janeiro, 2017, p. 161)
A imprensa transformou Lula em inimigo público. Isso possibilitou a condenação dele através da farsa processual grotesca urdida por Sérgio Moro e Deltan Dellagnol. Para que seu inimigo não pudesse disputar a eleição presidencial, a imprenta fez o que era necessário para que ele fosse imediatamente preso.
Foi assim que o princípio constitucional da presunção de inocência (CF/88, art. 5º LVII), que garante o cumprimento da sentença somente após o trânsito em julgado da condenação (tal como prescrito no Código Penal, art. 283), acabou sendo transformado em inimigo público. O Direito Penal deveria ser um fim em si mesmo foi transformado num meio para consolidar a vontade imperativa da imprensa de condenar Lula à prisão. O fato dela ser injusta se tornou irrelevante.
Sempre que o STF é obrigado a decidir a constitucionalidade ou não do art. 283, do CPP, os jornalistas tentam coagir os Ministros do Tribunal a excluir da arena jurídica as garantias constitucionais e legais que podem beneficiar seu inimigo. Os generais aproveitam para fazer o mesmo. Esse fenômeno confirma a tese de Zaffaroni de que o Estado de Direito que admite o conceito de inimigo está fadado a se transformar em Estado absoluto. A limitação do poder punitivo não é possível quando o Direito Penal deixa de ser um fim em si mesmo e se transforma num meio para satisfazer o desejo da imprensa e o sadismo de alguns militares.
Zaffaroni acertou na mosca quanto disse que:
“A função do direito penal de todo Estado de direito (da doutrina penal como programadora de um exercício racional do poder jurídico) deve ser a redução e a contenção do poder punitivo dentro dos limites menos irracionais possíveis. Se o direito penal não consegue que o poder jurídico assuma essa função, lamentavelmente terá fracassado e com ele o Estado de direito perecerá.” (O Inimigo no Direito Penal, E. Raúl Zaffaroni, Editora Renavan, Rio de Janeiro, 2017, p. 172)
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“Quanto mais habilitações o poder punitivo tiver nas legislações, maior será o campo de arbítrio seletivo das agências de criminalização secundária e menores poderão ser os controles e contenções do poder jurídico a seu respeito.” (O Inimigo no Direito Penal, E. Raúl Zaffaroni, Editora Renavan, Rio de Janeiro, 2017, p. 170)
Existe, todavia, algo que o grande jurista argentino não foi capaz de dizer. A imprensa é livre, mas não pode ser transformada numa agência de criminalização com poderes excepcionais de dizer o Direito que deverá ser dito pelos Tribunais. O fato dela legitimar as ambições autoritárias de alguns militares deve ser considerada uma razão adicional para o STF resistir à tentação de se submeter. Afinal, sempre que se instala num país o autoritarismo acaba se voltando contra os próprios jornalistas.
Na sociedade do espetáculo o Direito perde sua substância. Portanto, são irrelevantes as discussões jurídicas feitas pelos juristas. Eles não comandam o show e não podem escrever o enredo da encenação que tem o poder de obstruir e/ou determinar o julgamento dos processos. Isso é particularmente verdade quando o processo já foi julgado pela mídia com base em critérios político-econômicos.
Enquanto os juristas não saírem do campo jurídico para pesquisar, descrever e estudar os conceitos jornalísticos que estão substituindo a Lei, a jurisprudência e a doutrina durante o julgamento das ADCs 43, 44 e 54 nada vai mudar. Nós continuaremos caminhando para a consolidação de um Estado absolutista em que todos poderão ser tratados como inimigos.
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A sofisticação dos juristas nesse caso pode ser um problema. Afinal, o espetáculo desdenha a sofisticação teórica e se expande ao infinito justamente porque simplifica os conceitos usando técnicas teatrais. O teatrinho encenado pela imprensa é simples: nele o autoritarismo praticado contra Lula não contaminará o Estado de Direito; a ditadura da imprensa sobre os Tribunais é legítima; a dinâmica do espetáculo pode se impor dentro e fora dos órgãos do Sistema de Justiça.
Apenas a realidade é capaz de desmascarar a ficção. Os fatos demonstram que nós já estamos quase vivendo num Estado absolutista. A função dos jornalistas não é julgar conforme a Lei e sim informar os cidadãos e eles deixam de fazer isso quando falsificam conceitos jurídicos por razões políticas. O Sistema de Justiça também tem a obrigação legal de impedir que a imprensa sacrifique seus inimigos.
Hoje o STF tem uma grande oportunidade de renovar seu compromisso com a democracia. Se o Estado policial construído com ajuda da imprensa não for detido vários outros princípios constitucionais serão transformados em inimigos: a tortura será considerada legítima e necessária; a pena de morte deixará de ser proibida; as execuções policiais extrajudiciais serão legalizadas. Não por acaso a proposta legislativa de Sérgio Moro já contempla algumas dessas propostas.
Eu já tinha terminado esse texto quando fiquei sabendo que o presidente Jair Bolsonaro disse usará o Exército caso ocorram no Brasil manifestações semelhantes às do Chile. Nada poderia ser mais didático do que isso.
Os chilenos estão se manifestando contra os efeitos deletérios de um sistema de previdência excludente que está em vigor desde a década de 1970. O impacto da reforma previdenciária aprovada ontem pelo Congresso Nacional só se fará sentir no Brasil daqui a 10 ou 20 anos. Portanto, em nosso país a ameaça de manifestações violentas é inexistente. Bolsonaro deliberadamente amplificou essa suposta ameaça porque ela se ajusta perfeitamente à sua vocação autoritária confirmando, assim, as palavras do jurista alemão Günter Frankemberg:
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“Na sombra de eventos catastróficos, cenários ameaçadores exacerbados e da produção frenética de medidas, o estado de exceção normalizado produz uma mentalidade na opinião pública civil que lhe é conveniente: os sentimentos de ameaça difusos e o medo da criminalidade condensam-se, formando uma necessidade de ‘certeza existencial’. combinados às promessas estatais de segurança, os receios eventuais impelem para a defensiva o experimento e a conservação da liberdade, que, de todo modo, já não são excessivamente populares, porque estão associados a esforços. Onde o nervosismo e os sentimentos de ameaça propagam-se, surgem insegurança cognitiva e ‘perda(s) de racionalidade e autonomia’ que acabam favorecendo o aumento compensatório do poder das agências estatais’ (Bung, 2006. p. 66).” (Técnicas de Estado – Perspectivas sobre o Estado de Direito e o Estado de Exceção, Günter Frankemberg, editora Unesp, são Paulo, 2018, p. 295)
Assim como o princípio constitucional da presunção de inocência foi transformado em inimigo (para manter Lula preso), as garantias de liberdade de reunião e de manifestação estão sendo criminosamente suspensas por Jair Bolsonaro (para impedir uma rediscussão da reforma da previdência). Isso prova satisfatoriamente minha tese de que se o STF não impor limites aos arroubos autoritários do novo regime em breve nós seremos confinados num Estado que presume que todos são escravos do presidente. Qualquer dissidência será punida com tortura, prisão e, eventualmente, com a morte.